A Revolta das ternuras
Não matem a cotovia
“As cotovias não fazem mais nada senão cantar para satisfação nossa. Não comem coisas nos jardins das pessoas, não fazem ninhos nas searas, não causam danos a ninguém. É por isso que é pecado matar uma cotovia.“
Harper Lee – Não matem a cotovia
Serei uma burla? Um logro? Uma ilusão?
Levantei o tapete
e pus a descoberto
um mundo
que finjo não ser meu.
É certo.
Que já olhei, olhos nos olhos
quantos vi morrer.
Que eu já vi morrer
gente importante,
de título, de fama e preconceito.
Gente sem nome,
com número de apelido,
vagueando vazio, sem sentido,
gente de fé, de força e ousadia,
gente de loa, de treta e cobardia,
outros tantos despojados do jardim
onde colhiam suas rosas encarnadas.
Mas ver morrer, de morte natural
toda essa multidão. Isso é normal.
Mas rir de lado à voz desse poeta
que pulveriza o ar com utopias
crente no amor,
e lança ao charco pedras
para nos abalar.
Mas ver chacotear
quem colhe uma flor
e sem saber nem como nem porquê
se vê posto de lado, ainda sorrindo,
por ser de outra cor.
Ou ver eliminar
quem segue sereno o seu caminho
e aos soluços e tropeços
trepa a pulso a montanha dos valores
e tomba já próximo do cume
derrubado pelos donos da verdade.
E que fiz eu nesse mundo
que finjo não ser meu?
Baixo o tapete.
Escondo tais misérias
no vácuo da rotina,
que quando só, sou pedras de caminho
onde a semente não germina.
Até que te encontrei, já perto do final,
meu companheiro de jorna e de jornada.
E tu mais eu mais tantos quanto queiram,
vamos erguer nossos tapetes voadores
para varrer o lixo destapado,
converter o ódio em poesia
e proibir até final, porque é pecado
que matem a cotovia.
O Natal. De qualquer lado.
De passagem pela aldeia
onde há séculos fui feliz,
passeando na calçada,
sereno,
olhando-me por dentro
na busca da verdade,
cheirou-me a bosta,
a gado e a estrume
saído dum curral.
Tentei fugir
que eu detesto o esterco.
Cheira mal.
Mas parei.
E hesitei.
Ganhei coragem
e lá fui eu.
Habituei os olhos ao escuro,
difícil que era
distinguir o que ocorria
com a ténue claridade que surgia
por entre duas telhas mal pousadas.
Previdente que sou,
valiam as botas altas que calçara,
lembrado da passagem pela aldeia
onde há séculos fui feliz.
E foi assim que eu,
o acético, o imaculado pensador,
meditando na busca da verdade,
ouvi um choro de criança
acabada de nascer.
Olhei à minha volta.
Avistei a Mãe
com cara ainda de quem sofre,
embalar, sorrindo,
o seu bebé.
Caí em mim.
Era Natal.
E entendi.
Ó se entendi
que a verdade que buscava
não era uma moral,
nem regras a cumprir,
nem fugir de tentações,
nem pregar sermões,
não eram mais conceitos,
nem preceitos,
nem doutas opiniões.
Tão pouco
prendas e pinhões.
Era sim o amor a uma criança
que no Natal, para quem crê,
vê nascer o Salvador do Mundo,
para quem não,
é o que esfrega o coração
daquele com quem cruzas,
que te entrega e te acolhe
os afetos, os festejos, os pesares.
Voltei daquele esterco
olhando-me por dentro
na busca da verdade.
Em cada dia
do ano que começa
avistarei, com cara de quem sofre,
aquela Mãe embalando a sorrir
o seu bebé.
E em cada dia, cada hora
em que este acético, imaculado pensador
cair na ousadia de criar mais um cliché,
ou ainda o preconceito
da linha que separa os bons dos maus,
os puros dos imundos,
acenderei o rastilho
dos sorrisos
onde tu e eu,
a cada hora,
seja de que de lado for,
derrubaremos muros.
Faremos o mundo ao nosso jeito
onde os bons e maus seremos todos
mas cada qual um instrumento da libertação.