Manuel

E ouvi o bater na vidraça

Não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos.
Anais Nin – 1903 / 1977

Eu tenho um vegetal de estimação.
Não come, não corre, não chora nem teme.
Mas molesta, distrai, diverte, estimula,
e sobretudo conversa.
Ó! Se conversa
Fala pelos cotovelos.

Com que lata penetra a janela das minhas rotinas.
Quase roça os limites do meu território
que com tanta porfia desenhei
para ser o espaço das minhas fotos, ferragens,
balanços e projetos, quimeras e tombos,
medos, trunfos e triunfos.

Entre ideias e atos
do meu desalinho
um bater na vidraça
me obriga a parar.
E escuto:
O! Perdão. Foi a brisa do Norte.
O seu zunir agitado
me fez oscilar.
Reajo. Pois tal bater de vidraça
me faz levantar. E suspeitar.

Entre as contas e pontas
dos meus afazeres
um bater na vidraça
me obriga a parar.
E escuto.
O! Desta vez foi o melro
de bico amarelo

pousado no ramo mais alto.
Com seu chilrear, me lembrou
a razão do que sou. E me abalou.
Reajo. Pois tal bater na vidraça
me faz levantar. E questionar.

Recriando quimeras e tretas
do meu rotinar
um bater na vidraça
me obriga a parar.
E escuto.
Desta vez não é brisa nem melro
de bico amarelo.
É mesmo uma estranha e profunda

vontade de desabafar.
Reajo. Pois tal bater na vidraça
me faz levantar. E conversar.

Aberta a janela ao limite
arrancamos conversa pegada
de olhos nos olhos,
(perdão)
de olhos nos ramos.
Despejamos as nossas lamúrias,
amores, sucessos, disputas,
encantos, condutas, temores.
Lembramos histórias passadas,
do quando e do que aí vem.

No final de conversa serena
cada um seguiu seu caminho,
quieto ou bulício.
Fechei a vidraça,
seguro que eu
e meu vegetal de estimação
seremos mais nós
em vidas que vêm.

E aguardo no meu rotinar
o bater da vidraça no dia que chega.
Que me faz levantar. E conversar.

Assinatura do autor Manuel Paulo